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nesta casa é que se vive o verdadeiro, e peculiar, estado de calamidade . há muito tempo que por aqui já se deixava o calçado da rua à entrada e não se andava em casa com esse calçado, apesar de esporadicamente acontecerem umas fugas e aparecer calçado no corredor (filhos) . entrada essa situada no r/c desta casa, sapateira essa, uma coisa construída de forma a existir mas a não ser percebida por estranhos, mas ali instalada para as pessoas se descalçarem e não circularem em casa com o calçado da rua . agora chega-me o covid e mudei a entrada de casa para a cave, porque ali posso ter um mini centro de desinfecção logo à porta, coisa que na entrada do r/c me ia estragar a decoração com a cómoda de avó querida e mais umas coisas que não se compadecem com a estética do frasco de álcool gel e o balde com lixívia e a respectiva esfregona . ora instalou-se o bordel na entrada da cave porque os rapazes vão ali largando calçado - eu também, mas eu posso porque sou a alma feminina da casa, tenho variações de humor, mudo de ideias e tenho umas hormonas diferentes das deles - e não há uma prateleira, uma porta, sei lá, uma qualquer barreira que me tape aquela calamidade das vistas . o raio do vírus até nas decorações das casas se veio meter . isto é coisa para me trazer alterada .
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no domingo resolvemos que já era tempo de ir tomar o café da manhã a uma esplanada, e fomos . estive o tempo todo num autentico destrabelhamento de nervos, ora porque o empregado pegou na garrafa de água, ora porque pegou no copo, ora porque depois pegou no dinheiro, ora porque eu devia ter levado uns toalhetes para desinfectar tudo e não me lembrei . tenho de me reeducar e acreditar que aquela pessoa lava tanto as mãos como eu, que ele mais do que eu, está a correr riscos e também toma medidas e se quero sair é para descontrair, não é este desassossego . estou uma lírica e passei a reparar em coisas que eram naturais e passaram a significar formas de contágio . é que ainda por cima há as formas comprovadas de contágio e as que eu descobri . as que eu descobri são um mundo . por pensamento, é uma delas, outra é por imaginação . até tenho a certeza que já fui contagiada, não tive os sintomas piores e agora estou imune, mas à cautela, sou pessoa estranha e capaz de apanhar doenças únicas, quatro e cinco vezes . por exemplo, desde que no outro dia fui à secção da fruta do supermercado tenho tido dores de garganta . não é sempre, é quando me lembro das pessoas em cima de mim a escolher cenouras e salsa .
ora o covid, entre outras coisas, leva-nos a uma espécie de velhice antecipada, as pessoas apuraram-se no melhor e no pior que têm em si . os que já eram bons, melhores ficaram, os que não eram lá grandes coisas, piores ficaram . nada que não aconteça à medida que envelhecemos . não acredito que os velhinhos beras foram bons jovens, assim como acredito piamente que os velhinhos mais queridos sempre foram boas pessoas .
o meu marido já foi cortar o cabelo, mas os míúdos não foram, achei por bem ser eu a cortar-lhes o cabelo . por acaso estava a gostar de ter os beatles em casa, mas pronto . devia ter começado pelo zé, mas comecei pelo pedro e decididamente, é melhor escolher outro hobby . o zé disse que agora gosta do cabelo bem grande e já não o quis cortar .
tenho falta de fé na higiene dos outros, os miúdos têm falta de fé no meu jeito para cortar cabelos . o universo encontra sempre um certo equilíbrio .
dúvidas: assumo que isto não é temporário e invisto numa sapateira na cave? (pergunto eu para mim)